segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Casa da estrada - pt. 3

Acho que cochilei novamente, nem me preocupei com a pessoa lá dentro do quarto. Não sei se é um deles, se é um sobrevivente que viu a janela aberta como uma oportunidade para se esconder...
As botas estão secas e as meias também, vou calçá-los e averiguar o que é afinal de contas. Calço as botas, me preparo psicologicamente e vou até a porta do quarto fechado.
Destranco e abro vagarosamente com a arma apontada apontada para onde possivelmente estará o corpo, com as mãos trêmulas vou abrindo a porta e encontro ali o corpo. Não parece um deles, está respirando com uma certa dificuldade, não vi dessas coisas respirando, suponho que seja um sobrevivente, a luz está fraca mas da para ver os movimentos do corpo. Cutuco com o cano da arma a cabeça e ele acorda, ao se virar vejo que ele está bastante ferido, seu rosto está arranhado e tem uma marca profunda no ombro. Pergunto quem é ele e como chegou aqui e ele me diz que fugiu de um bloqueio da estrada logo mais atrás e se escondeu no mato.
Imaginei até que bloqueio seria, deve ter sido aquele ao qual passei, onde havia vários carros parados, mas se era um bloqueio, por que todos os veículos estavam no acostamento? Essa era uma pergunta que eu preferi guardar para mim mesmo e o deixei falar.
Ele foi falando, com dificuldade e pedi muito por água, dizia que estava com uma sede interminável, que estava com frio, dava para ver seu corpo tremendo de frio mesmo, suava muito e sentia o calor da febre ao chegar perto. Ainda me disse que foi atacado por um bando dessas coisas, que correram atrás dele e um o arranhou e mordeu. Eu sabia o que isso significava, esse sujeito estava condenado a se transformar em um desses. Eu teria que atirar nele mas precisava de maiores informações, talvez dar a ele um final de vida mais confortável, não posso virar um monstro desalmado com sobreviventes, mesmo que tenham apenas algumas horas de vida.
Ele me disse que estava vindo de São Paulo, a cidade virou um caos, um surto populacional de zumbis da noite para o dia. Os primeiros infectados foram os moradores de rua, poucos desconfiaram do comportamento por se tratar de mendigos aparentemente bebados ou drogados até que começaram a atacar as pessoas. A polícia foi acionada mas atacaram em bandos, ninguém está psicologicamente preparado para um ataque de mordidas animalescas ou unhas. A polícia rapidamente foi tomada e em seguida as ambulâncias, os serviços de urgência foram os primeiros a serem tomados e consequentemente a população.
Acidentes com o metro, ônibus e outros meios de transportes coletivos haviam sido alvos dos ataques deles, muita gente e pouco espaço para fuga. Ele contava com lágrimas nos olhos, deve ter visto coisas horríveis.
Comentou que muitos prédios começaram a pegar fogo, o pânico tomou conta da capital paulista, pessoas pulavam das janelas, igrejas eram invadidas, casas eram saqueadas, correria e por fum um apagão na cidade. Não havia energia e qualquer ponto de luz era seguido pelos zumbis. Perguntei como que a luz simplesmente foi cortada e ele me disse que o exército havia cortado a energia como forma de sitiar a cidade mas isso acabou ajudando mesmo os monstros, ele me disse que viu vários deles farejando o ar, alguns se moviam como animais, corriam com a ajuda das mãos e braços, que pareciam gorilas enrivecidos. Alguns pulavam e eram muito ágeis, corriam em bando para caçar qualquer criatura de sangue quente. Cães, gatos e outros animais eram comidos também.
Contei que em Brasília não estava assim, os zumbis eram lerdos e não havia nenhum correndo ou com alguma característica que ele descreveu.
Ele não falava direito, devia estar muito cansado mesmo, bebia litros de água e ainda reclamava da sede. Disse que poderia me ajudar a fechar a janela do quarto, o que ele me disse realmente me preocupou, não quero nenhum homem-macaco zumbi pulando essa janela. Fechamos e levantamos a cama para tapá-la, era um ponto cego na casa ao qual não queria arriscar a segurança.
Ele se sentou no sofá, expliquei a ele o que havia acontecido aqui, ele não ligou muito, estava ofegante e cansado, perguntou para onde eu estava indo. Disse que estava indo para Curitiba, que tinha escutado notícias de que lá a epidemia estava contida e tinha conhecidos e abrigo lá. Me perguntou ainda se tinha transporte mas disse que estava atolado, mesmo com a chuva diminuindo precisava esperar a lama secar um pouco para sair com o carro. Estava preso ali mesmo.
Ele notou minha aflição, perguntou porque estava tão nervoso, eu sabia que pessoas mordidas eram transformadas naquilo, parece que ele não sabe e pelo visto a doença estava bem avançada já em seu corpo. Seu suor não era mais apenas água, era quase viscoso, ele estava ficando pálido e fraco, não conseguia manter os olhos abertos por muito tempo. Ele tinha um cheiro de sangue e carne velha, não cheiro de carne podre mas um cheiro que me lembrou açougue em dias quentes, não era agradável. Por fim ele fechou os olhos.
Apontei a arma para sua cabeça esperando ele "voltar", engatilhei e fiquei esperando, tinha que me controlar, não levar susto, ser sangue frio, manter o controle das mãos e dos nervos, ainda assim eu tremia, minha respiração ficou pesada, só escutava a chuva que diminuia, o vento que ainda estava forte lá fora mexendo as folhagens do mato e o pulsar forte do meu coração no ouvido. Senti o suor escorrer na minha testa e acumular nas sombrancelhas, estava mesmo nervoso mas não poderia vacilar.
Senti minhas pernas tremerem, acho que se precisasse correr agora eu cairia, não tinha mesmo o que fazer, só esperar pelo inevitável.
Ele abriu os olhos mas sua respiração ainda soltava vapor devido ao frio, quase atirei e ele se assustou ao abrir o olho e ver aquela arma apontada para sua cara. Com uma cara de espanto e cansado ele me perguntou o que eu estava fazendo. Expliquei que ele vai virar um daqueles zumbis, pessoas mordidas viram mais rápido e as arranhadas também, mas demora um pouco mais para a infecção se espalhar.
Ele baixou os olhos, ele sabia que eu estava certo, acentiu com a cabeça e pediu para que eu esperasse ele deixar de ser um vivo antes de atirar nele.
Confirmei com a cabeça e lhe dei um cigarro, estava acabando mas era o único luxo naquela hora e naquele lugar. Ele fumou, bebeu meu café e esperou. Começou a me falar de tudo que havia visto em São Paulo.
Seus relatos eram assustadores, pessoas correndo ensanguentadas, zumbis caçando como animais, dando bote ou em grupo. Ele me disse que tinha perdido as esperanças quando um certo dia parou de ouvir tiros pela cidade. Ele estava escondido em um apartamento alto, no centro de São Paulo, que via tudo acontecendo pela janela, tiros e gritos, explosões, corpos queimando na rua e alguns correndo mesmo pegando fogo. Parece que atear fogo em zumbi não adianta muito coisa, não de imediato. O exército nas ruas atirando, foram cercados e devorados. Não sobrou nada, apenas zumbis na rua, andando sem rumo farejando o ar, olhando para os lados procurando por algo. De noite só ouvia os gemidos da cidade, estava tudo silencioso, nenhum tiro, nenhuma evidência de resistência, nada. Foi quando ele decidiu fugir, pegou seu carro, aproveitando os raros momentos de "sonolência" dos zumbis e correu. Ele me disse que ao olhar pelo retrovisor viu vários deles correndo atrás por vários quilômetros, disse que acelerou e foi embora pela estrada mas que estava muito assustado e bateu com o carro em outro veículo parado no caminho. O carro continuou andando mas super aqueceu e parou na estrada. Ficou andando por horas pelo acostamento tentando achar um lugar seguro mas não conseguiu. Disse que algumas horas depois ele viu o mesmo bando de longe, correndo pela estrada, estava na trilha dele ainda e estava correndo muito rápidos e alguns corriam com a ajuda dos braços. Foi quando ele se escondeu no mato e veio correndo por ele, no desespero não pensou direito, apenas correu pelo mato e via eles correndo em sua direção, disse que correu por vários quilômetros até achar a janela e pular dentro e acordar com a minha arma apontada para ele.
Quando ele contou isso ele se tocou, parece que ele viu minha expressão, eu havia arregalado os olhos e ele só pode soltar um palavrão baixinho.
Ele mesmo disse que se ele estava aqui, os zumbis seguiram seu rastro até aqui.
Perguntei como, onde e quando ele havia sido mordido, ele disse que quando estava entrando no carro um deles pulou sobre o carro e o atacou.
Só pude dizer que ele havia muito pouco tempo como vivo mas mesmo assim não poderia atirar nele, o barulho iria atrair os que seguiram. Ele parou para pensar e surpreendentemente me falou para fazer uma coisa: Amarrá-lo, amordaçá-lo e matar de novo mas de outro jeito que não chame atenção. Aceitei a proposta, ele pediu desculpas por ter atraido essa confusão para cá e que não queria mais correr, estava cansado e começando a ficar com um sono estranho. Procuramos pela casa com o que amarrá-lo mas não encontramos cordas. Não iríamos sair da casa para procurar do lado de fora. Fomos até o quarto e abrimos o armário, vi sapatos com cadarço, isso iria servir. Tinha alguns cintos também, isso iria ajudar.
Amarrei suas mãos para trás com os cadarços, deixei bem preso e seus pés também. Disse que para previr iria amarrar seu pescoço na cama levantada no estrado, ele poderia ficar sentado mas quando voltar como um deles, não teria como se mexer muito, ele aceitou e disse para eu ser rápido, ele estava sentindo seu corpo enrigecer, seus lábios estava azulados e estava com a pele totalmente pálida até agora. Isso me lembrou a cena daquela moça em Brasília, a moça do mercado. Os sintomas eram iguais e em menos de 10 minutos estava comendo seu colega de trabalho.
Lá estava ele, amarrado, preso como um animal que iria se transformar e me olhou. Fitou bem em meus olhos e chorou, pedindo perdão pelo trabalho e pelo provável trabalho que vai me dar depois. Sentei na sua frente e agradeci pela companhia, fazia tempo que não conversava com ninguém e que era bom escutar outro humano para variar. Me sentia péssimo com aquilo tudo mas era necessário e ele mesmo percebeu que era necessário.
Ele só pediu para que antes amordaçá-lo, esperasse ele parar de respirar, não queria morrer assim. Ele disse que queria fazer uma oração pela sua alma e pela minha, agradeci sua gentileza e o deixei com sua oração.
Enquanto escutava o murmurinho do quarto eu sabia que ainda estava vivo mas agora, aqui na cozinha, precisava encontrar algo para matá-lo de vez. Não tinha nada, encontrei uma frigideira mas isso não iria fazer muito efeito e o barulho chamaria muito atenção.
Encontrei uma faca de cozinha, não era como aquelas grandes de carne mas tinha um bom tamanho de lâmina. Agora comecei a pensar em como cravar essa faca na cabeça dele.
Quando me dei conta eu estava péssimo, estava planejando a maneira de matar uma pesoa que estava orando por mim... No que me tornei...
Meus pensamentos foram cortados com a tosse seca e fraca dele vindo do quarto. Sabia que estava chegando a hora, não tinha jeito, teria que improvisar na hora.
Ao chegar no quarto, eu não mostrei a faca, não queria que isso fosse sua última visão como vivo. Ele me olhou com muito esforço, com um sorriso de canto de boca e falou "amém", e sua cabeça pendeu para frente. Peguei o pano de prato que tinha achado antes para o café, enrolei e amordacei sua boca morta. Agora é só esperar sua volta, tirei a faca da cintura e medi o tamanho da lâmina entrando logo atrás do queixo até em cima, o tamanho foi suficiente para passar dos olhos, isso iria matá-lo de vez com certeza. Posicionei a faca atrás de seu queixo e esperei ele se mexer...