Que dia é hoje? Estive de guarda por toda a madrugada até a neblina se dissipar, o sol bateu na minha cara e acho que dormi de exaustão.
Acordei com o velho me chamando, ele estava com uma cara abatida e a velha estava sonolenta. Eles não conseguiram dormir mas disse-lhes sobre a idéia de ir para Curitiba. Lá tenho um apartamento em um prédio alto, prédios assim são ótimos esconderijos se a portaria estiver bem lacrada, a idéia do litoral foi explicada e avisei sobre os problemas de tentar fugir por ar. Ele disse que já sabia sobre os ataques aéreos, nenhum avião das américas podem decolar e sair da costa, nem do Índico nem do Atlântico, mesmo em águas internacionais, os aviões serão abatidos. A última informação que tive dele é que, ao redor das américas há vários navios de guerra, porta-aviões fortemente armados e há a suspeita de um ataque com bombas de destruição em massa. Isso claro, é suposição... Perguntei se havia algo de perigoso a fuga por mar e ele não soube me responder. Disse que seria uma boa usar esse carro velho para descermos até o Paraná, é perto do litoral e seria mais tranquilo para fugir. O casal negou com um sorriso e uma cara de pesar.
-Estamos velhos, cansados disso. Aquele indivíduo que estava alvejando era meu filho... Eu suspeitava desse incidente e já sabia das conseqüências. Lembre-se, não será mais filho, namorada, marido, parente, mãe ou pai, após a infecção, é um animal carnívoro que não mede esforços para devorar você. - Disse o velho com os lábios encolhidos.
-Vai você meu filho - disse a velha - Pegue o que precisar, ajudaremos no que pudermos mas antes, tente conseguir um pouco mais de água para nós.
Era esse o plano inicial para hoje, não sei que dia é hoje, sem sinal, meu celular só mostra "off-line", sem data, apenas a hora já que configurei manualmente devido ao horário de verão.
Subi no telhado de novo para ver qual era a casa mais propícia a uma pilhagem mais segura. Havia uma casa, que passou na minha cabeça, que talvez seria boa, a do vizinho do lado. Estava sujo, estava uma cena pavorosa mas não havia sinal nenhum de movimento. Peguei a escada, subi até o muro, puxei a escada e coloquei apoiada do outro lado para poder voltar.
Ao descer a escada, que rangia bastante, não ouvi anda. Nenhum urro, gemido, nada. Aquele corpo boiando na piscina não se mexia mais do que as ondas da água devido ao vento poderiam mexer nele.
Andando pela varanda com certo cuidado para não escorregar no sangue entrei na casa com a arma pronta.
-Na cabeça, sempre na cabeça - falei baixinho para me certificar de não fazer cagada.
Andando pela casa achando que ia dar de cara com um zumbi desses, a entrada da sala pela varanda era bem larga, comum em casas de Brasília, já de cara deu com um conjunto de sofás bem acolchoados, de cor mostarda de 2 e 3 lugares. Estranhamente limpos. O tapete embaixo deles estava limpo também e era branco. Me perguntei como que tinha esse pandemônio de sangue da porta pra lá e aqui está tão limpo?
Andando mais um pouco, olhando para as paredes cheios de quadros de família, com fotos ampliadas e molduras cheias de enfeites. Um quadro de metal com fotos presas com ímãs decorativos e toda essa coisa fofa de família. A casa era grande, teria muito o que explorar ainda, vou ver a água depois de ter certeza que não tem nada aqui que queira me devorar. Achei o computador ligado, na tela tinha alguns respingos de sangue, parece um espirro, gotas pequenas e só. Não achei nada de anormal dentro da casa. Resolvi explorar os quartos, pensei em marcar cada cômodo que explorar para não me perder. Abri a primeira porta do corredor, era o banheiro, limpo, enorme, uma toalha ainda estava úmida mas quase seca. Fechei a porta e risquei com uma caneta que tinha no bolso. A porta da frente era um quarto, apenas uma cama de solteiro e um armário de 2 portas. Deve ser o quarto de visitas, estava arrumado e levemente empoeirado no chão. Parece que ninguém entra nesse quarto a semanas. Ao abrir o armário só vi 2 cobertores e um travesseiro sem fronha. Fechei a porta e risquei de novo.
Na próxima porta, ao abrir, encontrei um quarto todo revirado, com alguns respingos de sangue na parede, não eram grandes mas me deu o que pensar. Não vou mexer mais nele, esse quarto esta mesmo bagunçado e uma pilha de edredons ali no canto me parece suspeito. fecho a porta e desenho uma interrogação na porta. Agora o último quarto, a cena foi forte, não foi nada agradável ver aquilo.
Uma família inteira sentada juntos, mortos, cada um com um tiro na cabeça e uma arma na mão do senhor ali. Era o pai das crianças, acho que no desespero ele matou todos e se matou. Era uma 38 e mais uma arma, mesmo sendo pequena, é útil. Peguei da sua mão dura e gelada e guardei no bolso. Ainda tinha alguns tiros, 4 corpos ali, 2 crianças o cara e o que deveria ser a mãe delas ali, juntos. Esse quarto era grande, havia muitos papéis no chão, desenhos, escritos, nada de muito útil e um armário enorme, escuro, que pegava a parede toda. Ao abrir achei bastante coisa legal. Mais balas para esse revolver, um notebook com carregador e uma mochila grande, parecido com aquelas de camping. Minha mochila era bacana mas não era grande, essa era boa mesmo, grande, cabia bastante coisa. Coloquei tudo dentro dela e fechei a porta. Risquei um X na porta e fui ver o resto da casa. A cozinha estava com pouca louça suja, nada revirado. A casa estava limpa por dentro, tirando aquele quarto, estava tudo em ordem.
A área de serviço tinha algumas roupas penduradas já secas. Nada de mais mesmo. Não tinha comida, parece que estavam se isolando aqui fazia tempo, sacos enormes de lixo estavam amontoado no canto da área. Fui ver a torneira, havia água mas nada para transportá-la. Nenhuma garrafa, o galão de 20 litros que eu queria já era. Minha idéia foi pegar uma mangueira do jardim e encher a caixa d'água dos velhos por ela. Ao voltar para varanda o velho estava em cima do muro vigiando, me olhou com uma cara surpresa, ele deve ter achado que eu não estaria vivo a essa altura. Falei que a casa estava ok mas a família estava morta. Não disse em que condições e nem que estava com outra arma. Disse que aqui havia água e achei uma mangueira no jardim. Falei para ele por a mangueira na caixa dele que eu ia abrir. Pela posição do Sol era perto de meio-dia.O velho puxou a mangueira ate sua caixa d'água e abri a torneira. Passamos um bom tempo ali enchendo a caixa, água para vários dias eles iriam ter. A gente se olhava mas não falava nada, o velho com uma cara de quem estava se lamentando muito ficava em silêncio. Não tínhamos mesmo o que conversar, apenas encher a caixa mesmo e me preparar para partir. Precisava ainda traçar uma rota até Curitiba, nunca havia dirigido por uma distância tão longa e não fazia idéia do que eu poderia encontrar no caminho.
O barulho de encanamento cheio de ar começou a ressoar pela torneira da mangueira. Isso significa que sugamos até a última gota do vizinho e agora o casal terá sua água por um bom tempo.
Pulei o muro de volta, olhando novamente para o corpo da piscina que continuava imóvel. Entramos na casa e preparamos uma grande refeição, hoje não precisávamos ficar de vigia, não precisávamos ficar alertas 100%, hoje eu iria comer bastante, dormir bastante e preparar minha viagem. Continuo não querendo saber o nome dos velhos, não quero estreitar ainda mais os laços afetivos com eles... sem nome, sem sofrimento.
Comemos bem e fomos dormir. Um silêncio mórbido ecoava no ar, nunca tinha tudo uma noite de silêncio como essa na minha vida. Os grandes centros urbanos não tinham essa quietude. Sonhei, sonhei com tudo que poderia sonhar sobre isso. Lembrando cada passo, cada grito, cada cara de pavor das pessoas que vi na rua. Acordo no meio da noite com sede, vou até a cozinha, bebo um copo de água e dormi de novo. Amanhã penso melhor no plano de fuga. Preciso mesmo dormir.