terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Fronteira PR/SP - pt. 2

Depois de uma noite muito bem dormida, como a muito não tinha, me sinto com mais vigor para até dar uns tiros em cabeças podres. Mas preciso relatar ainda os acontecimentos...
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A noite na guarita foi relativamente tranqüila. Mesmo me trancado em um sótão pequeno mas de bom espaço, o conforto do colchonete parecia um milagre e o travesseiro foi um achado mesmo. Fui ver pela pequena ventarola e vi o lado de fora... Tinha vários deles lá perambulando em volta. As luzes acesas durante a noite chamou mesmo a atenção deles. Por sorte ainda não me viram e também não me farejaram, isso é uma ótima oportunidade para treinar tiro ao alvo com eles. Abri o alçapão devagar para não fazer barulho e verifiquei se dentro da guarita não tinha nenhum deles, a paranóia é grande mas vai salvar minha vida.
Não tinha anda lá e lembrei do corpo da agente na entrada, meu deu um pouco de pena, imagino que ela tenha se matado no desespero e ela era muito nova ainda.
Enfim, melhor me livrar do corpo mas dessa vez vou fazer algo mais humano. Abri a porta que separava a sala de entrada do dormitório e pelo vidro fumê pude ver todos os zumbis ali andando mas eles não podiam me ver, tinha essa vantagem a meu favor. Peguei a arma que estava em sua mão que estava rígida em rigor mortis, coloquei no balcão onde estavam os controles e fui vasculhar os bolsos. Achei sua carteira e fui ver seu nome. Ao abrir a carteira uma foto pequena caiu com a foto dela abraçada com um rapaz aparentando a mesma idade e no colo uma criança pequena não aparentando mais de 1 ano... Isso me abalou muito mas tinha algo de familiar nesse rapaz. Ela usava uma aliança e quando dei por mim a foto desse moço era do mesmo zumbi que estava de olho na lanterna. O nome dela era Camila Rebeca, seu cabelo longo meio cacheado, loiro com cobre, sujo de sangue seco e sua pele meio branca meio cinza estava lá, caida no chão, imaginei que talvez ela tenha se desesperado ao ver o marido transformado, não quis nem pensar no que tinha acontecido a criança, para alguém como ela, treinada a ver muitas coisas e acidentes, tirar a própria vida, não deve ter sido nada agradável.
O nome do marido estava atrás da foto, Johnny V., na foto ele estava com rabo de cavalo, cabelo preto liso, olhos azuis, tamanho mediano, pelo que vi essa foto é meio antiga, o zumbi lá fora se assemelha muito mas está bem mais encorpado, o treinamento na polícia deve ter feito isso a ele mas aqueles olhos brancos, se ver bem, tem um tom azulado bem claro. Deve ser ele mesmo, ao pegar o microfone da mesa e apertar o botão de falar pelo auto-falante, falei o nome Johnny e ele se virou... era ele sim e pelo visto ainda tinha um pouco de memória. Ele deve ter se transformado muito recentemente então isso explicaria suas ações. Bom, tinha que dar um fim "quase" digno para a agente Camila. Peguei um cobertor no dormitório, enrolei no corpo dela, isso deu muito trabalho mas era necessário. Fiz uma espécie de mumificação com cobertor e esperei para ver se a passagem da porta da entrada estava livre e pelo visto eu estava cercado, mesmo que eles não queiram entrar, estavam lá vagando, atraídos de noite pelas luzes. Teria que esperar um pouco antes de colocá-la lá fora. Eu vi um rádio na mesa junto com um computador meio obsoleto. Tinha todas as funções de rádio de ondas curtas, deve ser com esse rádio que eles se comunicavam com a central e as viaturas. Pensei em usá-lo mais tarde, vai que dou sorte e consigo contato com alguém, talvez com o Luciano em Brasília, ele disse que talvez conseguiria um ou com qualquer outro sobrevivente. Sinto falta de ouvir outra voz.
Precisava urgente de um café e fui explorar com a curiosidade de uma criança em época de natal, a cozinha improvisada da guarita. Estranhamente estava mais preocupado em tomar um café do que com aquelas dezenas de 'podres' lá fora e sim, para minha sorte todos os agentes são viciados em café com açúcar. O fogareiro era elétrico, então o plano de explodir outro botijão já era mas pelo menos tinha como aquecer as coisas. Havia muito macarrão, miojo, molhos e enlatados, comida de acampamento mesmo para durar pelo menos uma semana. Então eu sei quanto tempo vou ficar aqui... Tem água e o banheiro é bem legal, posso finalmente tomar um banho e lavar as roupas íntimas, incrível como podemos sentir falta de meias e cuecas limpas, talvez seja por isso que minha mãe sempre me enchia o saco para me casar de novo (ha-ha)...
Enquanto a água fervia fui sujar o banheiro. Na minha mochila peguei todas as meias e cuecas que levava comigo e lavei no banho mesmo. Me senti quase normal fazendo isso, tinha bastante sabonete, shampoos, desses genéricos mesmo, desodorante e escovas de dentes de dentista do SUS e algumas pastas de dentes de uma marca que nunca ouvi falar mas enfim... Isso é mais que luxo para mim agora. Tomei um banho quente demorado, a água ia pro ralo quase marrom, estava mesmo sujo e com algumas manchas de sangue, fui lavando as peças de roupa quase que freneticamente, isso foi estranhamente relaxante, pude pensar com clareza sobre várias coisas e lembrar de tudo, uma retrospectiva de tudo que aconteceu de Brasília até aqui... Chuveiro elétrico é mesmo uma bênção, não dependo de água quente armazenada para sair logo do banho. Pude me sentir limpo de verdade depois de muito tempo.
Estendi as peças de roupa no dormitório apoiado no estrado do beliche na parte de baixo e fui passar o café. Aquilo era vida normal, mesmo que confinado em concreto, aquilo era normal, pude cozinhar um miojo com sardinha enlatada e um molho estranho que achei mas ainda na validade e comi com gosto. Sucos solúveis e água gelada no frigobar, era perfeito mas todo esse luxo tinha prazo para terminar. Uma semana, mais do que isso vai faltar comida, preciso me alimentar bem, ficar esperto para poder enfrentar essas coisas.
Voltei minha atenção ao rádio da sala de entrada, enquanto estava enrolando a massa no garfo e comendo sem prestar atenção, só olhava pro rádio e pensava com esperança se alguém iria me ouvir. Terminei de comer, coloquei a louça suja em uma bacia com água e me sentei de frente ao rádio com uma cara de palerma perdido. Esse modelo nunca vi e não faço a menor idéia de como funciona, a única coisa que sei disso aqui é o botão ON/OFF. Liguei o rádio e o som de estático ecoou pela sala, isso me deu uma sensação de isolamento ainda maior mas pelo menos não ouvia os gemidos dos mortos lá fora. Diminui um pouco o volume, não quero chamar atenção. Tinha um botão de freqüência e um outro com a função de "Scan", pelo que sei um pouco esse scan deve ser para achar sinal de rádio por aí sendo emitido, apertei ele uma vez e escutei o chiado diminuindo e voltando, alguns assovios mas nada de mais, apenas estática. Deixei o rádio varrendo os sinais em modo repetitivo e fui ver o computador. Ele estava on-line, incrivelmente funcional. Não acessava muita coisa, apenas o sistema integrado do ministério público, não tinha acesso a mais nada, nem chats, páginas sociais nem nada, apenas trabalho mesmo. tentei ver algum link de contato em tempo real mas sem sucesso. O som de estática assombrava o ambiente, me sentia totalmente isolado, essa sensação ruim estava me incomodando de verdade, estava mesmo angustiado, a sensação de isolamento estava acabando comigo até que tive a idéia brilhante de treinar tiros. Munição tinha, armas tinha e alvos, tinha um monte.
Subi até o sótão novamente, abri a caixa onde havia encontrando algumas armas e separei cada uma. Comecei com a pistola, era uma 750, eficiente mas fraca. Me deitei no colchonete e fiquei mirando pela ventarola até que dei o primeiro tiro. Acertei o pescoço de um deles, ele cambaleou bastante mas não caiu, os outros fitaram ele e começaram a olhar pros lados, um tiro de perto confunde a origem do som. Eles pararam de simplesmente vagar a esmo e ficaram em posição de 'alerta', isso foi preocupante, as reações são mesmo animalescas, eles ficaram espertos por aqui, viram um ser alvejado e procuraram a origem, alguns estavam farejando o ar, eu sei como isso funciona e torcia para que o cheiro de mofo do sótão me  escondesse do olfato deles.
Precisava chamar a atenção deles para outro lugar foi quando vi o caminhão do outro lado da estrada, imaginei que ao atirar nele o barulho iria atraí-los. E estava certo, um pouco de lógica me fez acertar um dos pneus e o barulho de ar escapando chamou a atenção deles, o movimento do caminhão tombando para o lado do pneu murchando fez com que o metal estalasse bastante e isso chamou bastante atenção deles. Eles foram em direção ao caminhão mas um ficou ali olhando pro vidro da entrada que ficava logo abaixo de mim, era o Johnny... Estranho chamar um monstro desses pelo nome mas ele tinha um e era mesmo Johnny, eu tentei imaginar o que o restinho de memória dele estava processando naquele momento, ele só podia ver seu próprio reflexo mas estava lá, como se soubesse que tinha mais coisa atrás daquele vidro espelhado escuro. Não vou atirar nele agora, ele pode ser útil em breve, eu vi o que ele pode fazer com outro desses mas agora era hora de deixar um cheiro de pólvora no ar...
*KPOW* - Acertei a cabeça daquele que estava com o pescoço perfurado e ele tombou na hora mas a atenção dos zumbis era tanta pro caminhão que nem notaram o baque do corpo no chão.
E fui atirando, sempre na cabeça...
*KPOW* *KPOW* *KPOW* *KPOW* *KPOW*
De 5 tiros derrubei 3 zumbis, até que é uma média aceitável, eu disse aceitável mas eu teria que ter derrubado 5. Economia de munição é importante e um tiro deve ser necessário para derrubar um zumbi, mas como estou com bastante munição aqui vou 'zuar' um pouco, mereço desestressar um pouco.
A mira estava boa, estranhamente eu atirava bem. Depois de brincar com a pistola parti para a ignorância e peguei a escopeta calibre 12.
*TEPAW* - O tiro era impressionante e o efeito melhor ainda, voou pedaço de carne podre para todo lado, derrubou alguns mas estavam vivos, faz bastante estrago mas só serviria para retardar um grupo de zumbis a médio alcance, melhor lembrar melhor disso.
O som da escopeta era muito forte e isso chamou a atenção de alguns deles para a guarita mas enquanto o pneu estivesse murchando o metal do caminhão estalaria e continuaria chamando a atenção deles.
Logo perderam o interesse pela guarita e continuaram olhando pro caminhão estalando, peguei a pistola de novo e atirei em outro pneu, não quero a atenção para cá, o pneu debaixo do carona era enorme e isso daria bastante tempo para chamar a atenção deles. Eu atirava bem com essa coisinha, e fui atirando e atirando, tomei um certo gosto macabro em estourar a cabeça deles, a cada cabeça aberta eu dava uma risada contida como um moleque fazendo arte escondido.
O que interrompeu essa 'diversão' foi um ruído novo no rádio. Escutei o que seria uma tentativa de voz metálica vindo da caixinha de som do aparelho. Desci correndo e fui ver o que era, a luz que indicava sinal estava piscando bem fraca e rápida, igual rádio doméstico quando encontra uma estação fraca, fui sintonizando manualmente para fazer uma sintonia fina e quando escutei uma frase que mudara todos os planos, tudo desmoronou, mesmo fraca, a voz dizia:

-... Paraná fechada... sshhhh... ...essshhhsstado ....sitiado.... ssshhhhsss ....fronteira comprometi... sssshhhhh ... repito.... comprometida....... ssssshhhhhhh.... 

Caí desesperado da cadeira, não podia crer naquilo, precisava entrar em contato com essa pessoa, era uma voz feminina.
Tentei me comunicar apertando o botão "Send" e nada, somente estática de novo.

-Alguém me escuta? Estou em um posto da PRF, alguém escuta? Estou cercado, tenho armas e munição mas estou cercado, alguém na escuta? Alguém? Meu nome é Cedric, alguém na escuta? Alô? Alô? ... ssshhhh...

Nada, nenhuma resposta, apenas estática... todas as minhas esperanças sumiram... o que eu poderia fazer? Ter o mesmo fim da Camila? Entrar em desespero, desistir depois de tão longe? Será que foi isso que ela escutou para desistir de vez?
Apenas estática, mas continuava tentando e tentando e tentando...
A luz do dia já estava indo embora e continuava tentando...
Hoje o céu escureceu mais rápido, nuvens pesadas de chuva estavam se aproximando e dava para ver a cortina cinza de água se aproximando, seria uma visão bonita se eu não estivesse tão... desesperado...